Os sistemas culinários passam por transformações em todo mundo. No Brasil, não passamos incólumes a tais mudanças, acentuadas pelo processo de globalização da economia e niundialização da cultura. Penetram em nossa sociedade novos produtos derivados da culinária internacional, novas tecnologias são inseridas nas maneiras de preparação dos alimentos e novas formas de servir-comer, capitaneadas pelas empresas de 'fast food', os famigerados McDonald's, além dos simulacros das cozinhas tradicionais, cujo maior emblema são as 'comidas a quilo', presentes em todos os centros urbanos brasileiros. Porém, nesse mundo cambiante e muitas vezes tão desor-ganizador dos nossos 'estômagos e cabeças', são mantidas as tradições locais, regionais, da nossa culinária. Tradições dinâmicas, constantemeiite acrescidas de novos elementos, mas cuja transmissão familiar, geracioiial, grupai, indica a permanência das disposições centrais, essenciais, qne regem os nossos subsistemas alimentares.
Raul Lody, com rara competência, aborda um dos mais tradicionais e específicos sistemas alimentares: a comida da 'famítia-de-santo', a culinária das religiões afro-brasileiras. Desenvolve, com sobras, a perspectiva relacional do comer brasileiro, apontada por Roberto da Matta, mostrando que comer nos terreiros é estabelecer vínculos e processos de comunicação entre homens, deuses, antepassados, natureza e objetos. Comida, que nos terreiros ganha uma dimensão especial, valo -rativa, pois não apenas alimenta o corpo, mas também o espírito. O autor mostra que 'todos comem' - da cabeça ao atabaque - o que comem, os objetos e as tecnologias de preparação dos alimentos, as 'mesas' e hierarquias que regem o comer, numa notável síntese da complexidade da culinária afro-bra-sileira.
Comida que já não é exclusividade dos afro-brasileiros, nem mesmo dos iniciados, pois se dissemina em toda a sociedade brasileira, atingindo todas as camadas e categorias sociais, seja no cotidiano familiar ou no convívio grupai, nas casas, ruas e 'casas de pasto'. É verdade que em nenhuma outra região do país a culinária de origem nos terreiros ganhou tanta vigência social, primazia, quanto na Bahia, a ponto de ser considerada um dos emblemas da identidade baiana. Entretanto, tem razão Gilberto Freyre quando diz, no prefácio da ld edição, que a cozinha ritual afro-baiana não monopoliza os pratos rituais afro-brasileiros, salientando a importância da pesquisa de Raul Lody.
O autor de 'Santo também come' é uni pesquisador compulsivo, no seu fazer etnografia. Eu próprio, nos últimos tempos, tenho acompanhado a sua trajelória, sendo surpreendido muitas vezes com a sua presença em Salvador, para o seu contínuo trabalho nos terreiros. Faz etnografia e boa, expressa num estilo e linguagem muito próprios, sem submissão aos pretensos rigores académicos, tantas vezes limitadores e totalilaristas.
Este é um livro fundamental e ainda contemporâneo, não obstante tanto tempo tenha se passado desde a la edição, para todos que se interessam por um dos aspectos mais significativos da cultura afro-brasileira, iniciados e iião-iniciados, académicos e leigos. Ler 'Santo também come' é obrigação e prazer, bom para pensar, quem sabe um digestivo para o comer.
Jeferson Bat-elar
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