Este é um livro de raras qualidades intelectuais e textuais, capaz de dialogar simultânea e diretamente, em planos distintos, com os pressupostos da 'tradição antropológica' francesa e com as literaturas brasileira e anglo-americana sobre os cultos de possessão em geral. Entretecido à luz de um longo e detalhado percurso etnográfico demarcado pela figura de Exu ao longo do século XX no Brasil, Stefania Capone monta e discute seus argumentos com base não só na observação participante, mas também em entrevistas e em detalhada documentação iconográfica.
Como tema central desses argumentos, as relações de poder na construção da legitimidade nos cultos afro-brasileiros, desembocando na demonstração da irredutível, e histórica, constituição mútua entre a 'tradição dos orixás' e seus 'antropólogos'. Ainda que esse ponto tenha sido abordado antes e depois deste trabalho, a presença do denso cotidiano das casas de culto, com seus jogos de poder, dá-lhe uma outra dimensão que revela o intenso uso dos achados desses jogos. Neste porto de chegada, vale enfatizar ainda o belo tom de objetividade alcançado pela autora na permanente reflexão sobre sua própria trajetória de mais de uma década em interação com casas de candomblé e instituições académicas em nosso país.
Longe do olhar estrangeiro que tenta redimir a estranheza do mundo nas quimeras atribuídas ao outro que tenta decifrar ou dominar, Stefania Capone procura explicitar os limites epistemológicos de seu trabalho como elemento de análise dos fluxos e das trocas presentes na permanente recriação das tradições hegemónicas de uma África que teria originado a suposta pureza de parte do candomblé praticado do Brasil e deixado as pegadas a serem 'corretamente' refeitas pelos antropólogos que a ele se agregam.
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